A (nova) Biblioteca de Babel
RUY FABIANO
A ideia de infinito fascina e acompanha desde sempre o ser humano. Em busca de imortalidade, os antigos egípcios construíram pirâmides e desenvolveram sofisticadas técnicas de mumificação, na expectativa (presumida) de que, materialmente preservados, seus governantes pudessem postular a eternidade.
A rigor, não se sabe se era esse mesmo o pensamento dos egípcios, cuja civilização é ainda denso mistério. Foi essa, porém, a dedução dos arqueólogos europeus, que, no século XIX, escavaram ruínas e decifraram o mistério dos hieróglifos.
Hoje, esse ponto de vista, de tão simplório, já não é consensual.
Como uma civilização tão sofisticada, que legou tantos enigmas à posteridade (a começar pela técnica de construção das pirâmides), nutriria expectativa tão pueril de fruir a eternidade embalada em sarcófagos? Esse, porém, é outro assunto.
Antes dos egípcios, desafiou-se a infinitude com a Torre de Babel, que (supõe-se mais uma vez) pretendia estabelecer um elo material entre o Céu e a Terra.
Platão concebeu a teoria do Eterno Regresso (que, pela repetição cíclica da História, transforma o finito em infinito), enquanto, com As Mil e Uma Noites, os árabes pretenderam dar cunho literário ao enigma.
O certo é que a ideia de eternidade e infinito transforma-se no curso das eras e civilizações. Ao tempo da biblioteca de Alexandria, fundada há 22 séculos e incendiada pelos muçulmanos no ano 640 da era cristã, acreditava-se possível armazenar, em rolos de papiro, todo o saber existente na Terra.
A biblioteca chegou a acumular 700 mil volumes, o que, durante séculos, causou assombro a toda a humanidade, como se representação numerológica da eternidade, cifra inconcebível, mesmo no elástico plano da imaginação.
Hoje, a biblioteca de Piracicaba possivelmente dispõe de acervo equivalente ou superior ao de Alexandria.
A Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, possui oito milhões de títulos; a do Congresso dos Estados Unidos possui 20 milhões de livros e cerca de 40 milhões de manuscritos, além de mapas, fotografias e incontáveis outros documentos.
Nem mesmo isso, porém, transmite mais ideia de infinito ou, muito menos, de eternidade. Há, ao contrário, certo tédio estatístico diante desses acervos, sobretudo quando postos diante da mais nova representação da infinitude: a Internet. InternEternidade.
A Web tornou-se a mais perfeita tradução da Biblioteca de Babel, descrita pelo cego-visionário Jorge Luís Borges, num conto, décadas antes do advento da Internet.
Por meio dela, a Biblioteca Digital Infinita, tem-se acesso a todas as bibliotecas convencionais do planeta. E isso é apenas uma fração de seu imensurável acervo, que aumenta à proporção de algumas bibliotecas de Alexandria por segundo.
A Babel de Borges era uma representação do Universo. Nela, estariam todos os livros, em todos os idiomas e combinações alfabéticas, sem que um só se repetisse. Borges tentou dar contornos palpáveis a essa imensidão, descrevendo-a como composta de “um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais”.
Na Internet, ignoram-se as formas do infinito. Pode-se dizer que possui todas e nenhuma forma; que se presta a todas as conjecturas, sem se circunscrever a nenhuma.
A possibilidade de expansão é infinita. Qualquer ideia pode encontrar seu tempo, espaço e interlocutores. Todos podem ter seu próprio portal, conectando-se a um número incalculável de outros, que, por sua vez, conectam-se a outros, e assim sucessivamente, em teia infinda de galáxias cibernéticas. Tem-se a síntese dos planos material e espiritual, em dimensão própria, que, possuindo características de ambos, não é nem um nem outro.
A busca de conexões e identidades, o conflito entre Bem e Mal, o eterno Armagedon bíblico, transferem-se para o plano virtual (nem sempre virtuoso), expresso em bits e bytes.
Os mesmos códigos morais, que há milênios acompanham a humanidade, inserem-se no (ainda desconhecido) mundo digital.
A Internet não resolve os enigmas e desafios do ser humano. Mas favorece a ideia de cósmica da unidade, de superação dos limites estabelecidos por idiomas, etnias e fronteiras nacionais. Mostra que existe possibilidade concreta de comunhão, de compartilhamento de conhecimento, espantos e enigmas (o vírus é matéria ou espírito?).
A Biblioteca Infinita, sonhada por Borges, está concretamente instalada. É preciso apenas que o ser humano se credencie a desfrutá-la. E isso resume o desafio inicial deste Milênio.
A Internet pode ser uma ferramenta a serviço do Bem (ou não, como diria Caetano Veloso). Dá asas ao homem, mas não o ensina a voar.