O caso Elza Fernandes e o sentimentalismo comunista - Gabriel Ladeira

É uma constante do movimento comunista explorar o sentimentalismo da opinião pública: a sensibilidade perante a visão da pobreza, das desigualdades sociais, das injustiças do sistema.

Em concomitância, apresenta-se a si próprio como seres repletos dos mais nobres valores e ideais, altruístas, preocupados com o destino dos mais humildes, e os únicos capazes de reverter as mazelas deste mundo.


Mas essa propaganda esconde uma dura realidade: o militante comunista é treinado para não ter sentimentos, para ser frio e inflexível na condução da revolução, em suma, para cometer os maiores crimes se necessário.

A Revolução e o Partido que a realiza são os valores supremos, aos quais todos os outros estão subordinados; assim, mentir, roubar ou matar são expedientes válidos na busca da utopia.

Essa realidade permeia toda a história do comunismo, e, aqui no Brasil, um caso exemplar foi o assassinato da militante Elza Fernandes.

A correspondência entre Luís Carlos Prestes e a liderança do PCB (Partido Comunista do Brasil) testemunha com clareza esse tipo de mentalidade.

Vale conhecer essa história.

Em 1935, após o fracasso da Intentona Comunista, o governo Vargas, baseado em declaração de estado de sítio, iniciou violenta repressão, encarcerando aos milhares suspeitos de participar da subversão.

O objetivo principal das forças policiais, e também o mais difícil, era colocar as mãos na liderança da revolução fracassada.

Cerca de um mês após o golpe, violenta explosão numa casa no bairro carioca do Grajaú rendeu à polícia as primeiras informações relevantes nesse sentido.

A casa era utilizada como depósito de “material de guerra” revolucionário. Lá, foram encontrados fuzis, granadas de mão, uma metralhadora, além de munições e explosivos, material furtado da Escola de Aviação Militar. Segundo o chefe de polícia, Filinto Müller, a descoberta do “arsenal comunista” e a prisão de um militante que revelou que esse material seria utilizado para explodir quartéis e prédios públicos, demonstraram que a “conspiração comunista ainda não havia sido exterminada”.

Esses acontecimentos foram em grande parte responsáveis pela prorrogação do estado de sítio por mais 90 dias.

O espanhol Francisco Romero, preso na casa do Grajaú, revelou à polícia mais de trinta nomes, e afirmou que o órgão máximo do PCB, o Secretariado Nacional, reunia-se de tempos em tempos na casa.

Dois nomes tinham destaque nas histórias contadas por Romero: Martins e Miranda, que passaram a ser procurados prioritariamente.

Miranda (Antônio Maciel Bonfim) e Martins (Honório de Freitas Guimarães) não se davam bem devido a disputas internas pela liderança do partido - e, como veremos adiante, essa rivalidade teve papel importante no assassinato de Elza Fernandes.

Por essa altura dos acontecimentos, entretanto, a polícia já sabia que os chefes supremos da insurreição de novembro não eram os membros do Secretariado Nacional.

Luís Carlos Prestes havia retornado ao Brasil clandestinamente, em abril de 1935, para comandar o golpe.

Além de sua esposa, Olga, que na verdade também era sua guarda-costas, entraram no Brasil com Prestes alguns estrangeiros, que ocupavam posição de destaque no Comintern (Internacional Comunista), dentre eles Rodolfo Ghiold e Arthur Ernest Ewert, conhecido como Harry Berger, responsável pela conversão de Prestes ao comunismo quando este esteve exilado no Uruguai, após o fracasso da Coluna Prestes.

Berger foi a primeira grande liderança a ser presa, identificado com o auxílio do British Intelligence Service, que informou à polícia brasileira a respeito da presença do judeu-alemão, antigo delegado do Comintern, no Brasil.

Levado à presença de Romero, foi reconhecido como um dos participantes das reuniões na casa do Grajaú.

Mesmo sob tortura, o velho comunista não forneceu informações relevantes à polícia; entretanto, em sua residência foram encontradas cartas que tratavam da organização do golpe.

Elas estavam num cofre, conectado a um dispositivo, que deveria explodir em caso de arrombamento, mas que por sorte da polícia falhou. Novas cartas foram encontradas na residência de Prestes, que, na pressa da fuga, deixou para trás documentos comprometedores.

De posse desse material, os investigadores começaram a montar o quadro do que estava acontecendo, e tiveram a confirmação de que novas rebeliões estavam sendo planejadas.

Um sério problema para a polícia era o fato de que, nessas correspondências, os personagens jamais eram tratados pelos nomes verdadeiros. Cada militante poderia ser conhecido por dois nomes de guerra e mais alguns nomes formais falsos.

Como Berger se recusava a falar, somente alguma outra alta liderança envolvida nessas correspondências poderia fornecer a chave dos codinomes.

Uma sigla em especial intrigava os investigadores: “GIN”, que parecia representar o comando revolucionário.

O próximo nome de peso a ser preso foi Miranda, na ocasião secretário-geral do PCB. Submetido a quatro dias de tortura, que ocasionaram mais tarde a remoção de um rim, ele forneceu informações valiosas à polícia a respeito dos codinomes.

Por meio de Miranda, descobriu-se que GIN era uma abreviatura dos nomes de guerra de Prestes (Garoto), Ghiold (Índio) e Berger (Nero).

Miranda, que também utilizava o codinome Américo, além dos nomes Antônio Maciel Bonfim e Adalberto de Andrade Fernandes, vivia junto de sua amante, uma garota de 21 anos, com pouco estudo, Elvira Cupello Calônio, também conhecida como Elza Fernandes.

Em 13 de janeiro de 1936, ambos foram presos em seu apartamento na Avenida Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, por agentes do DOPS. Começava então a epopeia que resultaria no assassinato de Elza pela liderança do PCB, pouco mais de um mês depois.

A jovem permaneceu presa por apenas duas semanas. Ao sair da prisão, foi procurar João Barbosa Melo, com uma nota escrita por Miranda, em que este pedia que o amigo a recolhesse.

Como, logo após ter sido visitado por Elza, João foi preso, uma desconfiança se acendeu no Secretariado em relação à garota, e foi decidido que ela deveria ser mantida sob custódia do Partido até segunda ordem.

Prestes, que já havia manifestado sua opinião de que a polícia vinha agindo com grande habilidade, acreditava que Elza estaria cooperando com as autoridades na esperança de conseguir a libertação do amante.

Suas desconfianças eram reforçadas pelo fato de que a polícia permitia que ela visitasse Miranda e também que levasse bilhetes dele a amigos.

Uma das principais acusações que recaía sobre a jovem era de que ela teria dado informações a respeito do paradeiro de Rodolfo Ghiold (Índio), que fora preso enquanto ela ainda estava na cadeia.

Elza foi submetida a dois interrogatórios onde a liderança do partido buscava encontrar contradições em suas falas, mas as respostas não davam embasamento para que fosse considerada traidora.

Prestes era da opinião de que a jovem havia sido bem instruída pela polícia. Numa tempestuosa reunião do Secretariado, Elza foi defendida por José Lago Morales, enquanto seu principal acusador era Honório de Freitas Guimarães, codinome Martins, inimigo de Miranda.

Martins havia conquistado a confiança de Prestes e, em relatório enviado a ele a respeito da reunião, afirmou que os argumentos de Morales contra a execução teriam convencido os outros se ele próprio não tivesse “salvado a situação” afirmando que Prestes era a favor de “medidas extremas”.

Cabia agora a Prestes deixar claro seu posicionamento, o que ele fez em um comunicado de 16 de fevereiro.

Além de Elza, desconfianças também recaíam sobre Miranda, que da prisão conseguiu enviar duas notas através de companheiros libertados.

Uma era para Francisco Meireles, em que afirmava estar muito doente e pedia para que “Chico” desfizesse as “infames calúnias” que se espalhavam sobre sua conduta.

A segunda nota foi para Elza. Como não recebia mais visitas da moça, Miranda escreveu-lhe em tons trágicos, pedindo que fosse visitá-lo o quanto antes, ou que mandasse notícias de onde estava.

As notas chegaram às mãos do Secretariado e foram péssimas para a reputação de Miranda, pois nelas ele revelava uma característica inadmissível para um verdadeiro revolucionário: o sentimentalismo.

Prestes ficou triste com a vacilação do camarada Miranda, mas muito mais triste com a vacilação do Secretariado em relação à execução da jovem, pois foi proposto o adiamento da medida devido às novas evidências (as notas). Assim, em famosa carta datada de 19 de fevereiro, Prestes dá “uma escovada” na liderança partidária revelando como um verdadeiro revolucionário deve agir, selando assim o destino de Elza.

“… Se vocês julgam que os bilhetes são verdadeiros, como podem qualificar isso de ‘fraqueza’ do ‘nosso companheiro Mir.’ Traição é traição e tanto maior quanto mais responsável for o traidor.

Mas voltemos ao caso da pequena. Com plena consciência da minha responsabilidade, desde os primeiros instantes, tenho dado a V. Sas. minha opinião sobre o que fazer com ela. Em minha carta de 16, sou categórico e nada mais tenho a acrescentar, nem creio que os últimos bilhetes atribuídos ao Mir possam modificar uma tal decisão. O SN [Secretariado Nacional] é soberano, e suas opiniões não devem ‘ficar à espera da opinião de V. Sas., que deve ser definitiva’, como diz o M. em sua carta.

Uma tal linguagem não é digna dos chefes de nosso Partido, pois é a linguagem de medrosos, incapazes de tomar uma decisão, temerosos ante a responsabilidade. Ou bem que V. Sas. concordam com as medidas extremas - e, neste caso, já as deviam ter resolutamente posto em prática -, ou então discordam, e deveriam, portanto, defender corajosamente a opinião própria …

Não é possível dirigir sem assumir responsabilidades. Por outro lado, uma liderança não tem direito de vacilar em questões que dizem respeito à defesa da própria organização.

Vocês compreenderão a veemência destas linhas, porque elas traduzem com a franqueza necessária entre nós toda a minha tristeza frente às vacilações da direção, em cujas mãos está o futuro da Revolução no Brasil.”


Em resposta a Prestes, Lauro Reginaldo da Rocha (Bangu), que vinha ocupando o cargo de secretário-geral interino, em meio a diversas justificativas, deixava claro: “Agora, não tenha cuidado que a coisa será feita direitinho, pois a questão sentimentalismo não existe por aqui.

Acima de tudo, colocamos os interesses do Partido.” E os interesses do Partido agora exigiam que uma jovem de 21 anos fosse friamente assassinada.

Elza foi convidada por Martins para tomarem café juntos. Logo, juntaram-se a eles outros quatro membros do Partido, dentre os quais Francisco Natividade Lira, codinome Cabeção, que asfixiou a moça com uma corda de varal, enquanto os outros a seguravam. Depois disso, Cabeção passou a quebrar os ossos da moça para que seu corpo coubesse num saco.

Quando partiu a coluna dela ao meio, um dos assassinos, Abobrinha, não suportou e desmaiou. Elza foi enterrada numa cova rasa no fundo do quintal.

Poucos dias depois, em 5 de março 1936, o esconderijo de Luís Carlos Prestes foi encontrado pela polícia. Prestes foi surpreendido de pijama, enquanto sua esposa Olga se colocava protetoramente à frente do pequeno e frágil “cavaleiro da esperança”.

Uma campanha internacional foi articulada pelo Comintern pela libertação de Prestes e de Olga, que havia sido deportada para sua terra natal, a Alemanha.

Ironicamente, a campanha apelava para o sentimentalismo da opinião pública, com cartões postais e cartazes contendo imagens de Olga na prisão com sua filha recém-nascida. Esse mesmo sentimentalismo foi explorado no famoso filme Olga, baseado na biografia de autoria do escritor e jornalista Fernando Morais.

O que o filme não mostra é que cerca de dez anos depois desses acontecimentos, em 1945, Prestes teve ótima oportunidade para demonstrar em sua pessoa a ausência do condenável sentimentalismo “burguês” quando servilmente passou a apoiar e defender Getúlio Vargas, o homem que havia mandado sua esposa grávida, uma judia, para as mãos da Gestapo nazista, o que a levou a morrer em um campo de concentração.

Enquanto o Brasil inteiro queria o fim da ditadura varguista do Estado Novo, Prestes foi uma das únicas lideranças de peso a defender a permanência no poder do ditador responsável pela morte de sua esposa.

O biógrafo de Prestes, Daniel Aarão Reis, que ameniza absolutamente todos os crimes do seu objeto de estudo, fornece uma curiosa justificativa para esse estranho comportamento:


“Entretanto, havia ainda certas questões incômodas: a polícia de Getúlio não torturara os comunistas? Não enlouquecera Berger de tanta porrada? Não barbarizara o próprio Prestes? Não deportara Olga, sua mulher, para a Alemanha nazista? Prestes sustentava, como já referido, que não se deviam misturar traumas pessoais e partidários com questões políticas que interessavam o país. A nação precisava de ordem e tranquilidade.”

Chega a ser cômico ver o líder da famosa Coluna Prestes e da Intentona Comunista justificar suas injustificáveis ações em nome da ordem e tranquilidade da nação.

A verdade é que da mesma forma que recebera de Moscou ordem para derrubar o governo Vargas em 1935, recebeu ordens inversas em 1945, para sustentá-lo.

Fielmente, engoliu a seco tudo o que Getúlio fez com sua esposa e seus amigos mais próximos, demonstrando que os valores mais sagrados do homem comum, como a defesa da própria família e a lealdade aos amigos, estão subordinados a uma obediência cega às ordens mais absurdas do Partido, por este ser o executor do único valor que realmente tem importância para um comunista: a Revolução.


Bibliografia:

DULLES, Jonh W. Foster. Anarquistas e Comunistas no Brasil.

DULLES, John W. Foster. O Comunismo no Brasil (1935-1945).

MARQUES, Gustavo. O Livro Negro do Comunismo no Brasil.

REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes, Um Revolucionário Entre Dois Mundos.