Pi: um novo Jó?

Todos concordam que nossos antepassados levavam vida muito mais duras do que nós. Tinham que caçar, fugir de feras selvagens. Lutar contra seus inimigos no braço. Enfrentar doenças e acidentes com uma medicina rudimentar. Enfim... Dureza.

Todos concordam que nossa vida é “mamão-com-açúcar”, comparada com a deles. Mas, mesmo assim, também temos que enfrentar tarefas que exigem todas as nossas capacidades e muitas vezes não damos conta da empreitada. Uma delas? Escolher um filme que você possa assistir à noite com sua família na TV a cabo.


a man riding a skateboard down the side of a ramp
a man riding a skateboard down the side of a ramp

Carlos Maltz

Tarefa árdua, se você não quiser assistir a algo que seja completamente imbecil ou minimamente pervertido. Se pudéssemos capturar uma pessoa da década de 1950 e jogá-la na nossa sala de estar, com um controle remoto na mão, com a tarefa de escolher um filme, ela provavelmente pensaria estar no Purgatório. Ou num manicômio. Ou coisa que o valha.

Dia desses tive que enfrentar esta batalha. Pelejei muito, pensei em desistir. Mas tinha prometido pra minha mulher... E minhas filhas... Que a gente ia assistir a um filme juntos. E elas não aguentam mais os faroestes e clássicos da Segunda Guerra. Nem “Gladiador”. Nem “Blade Runner”.

Minha mulher sugeriu: “As Aventuras de Pi”. A princípio, torci o nariz. Tinha assistido a esse filme há muito tempo. Lembrava pouco. Uma história bizarra: um cara com um tigre num bote salva-vidas, perdido no mar. Mas, na falta de opção, topei.

Que grata surpresa. Dizem que nunca lemos o mesmo livro novamente. Nem vemos o mesmo filme. Concordo. Assisti a um filme a que nunca tinha assistido. Além da beleza plástica, que acumulou prêmios e custou a falência do estúdio, que se lançou quixotescamente na aventura, sem medir custo-benefício, temos uma reflexão “teológica” pouco comum nesses dias.

Aliás, as “reflexões” nestes dias de radicalismo de ideias, costumam ser dogmáticas e doutrinárias. Mesmo quando o assunto não tem nada a ver com Teologia. Ou talvez, na verdade tudo tenha virado Teologia. E uma imensa guerra religiosa, não é mesmo?

No filme, temos um personagem impagável, que se chama “Piscine”, ou piscina, em francês, que se encontra, depois de um fatídico naufrágio, sozinho com um tigre de Bengala, chamado “Richard Parker”, em um bote salva-vidas, perdido no mar. Argumento genial. Quem poderia pensar uma coisa dessas? Piscine, ou Pi, apresenta sua história maluca a um escritor depressivo em crise de criatividade, que lhe desafia a fazê-lo acreditar em Deus.

Um alter-ego do autor do livro? Talvez.

Pi, não faz nenhum tipo de doutrinação ou pregação. Apenas conta a história. Ou uma versão da história. Que poderia ser outra. E ele faz questão de deixar isso bem claro. E o filme não deixa claro qual é a versão real. Pi deixa seu ouvinte escolher. E o diretor, Ang Lee, nos deixa escolher também.

Em resumo, Pi é um jovem hindu, que desde sempre esteve interessado no mistério de Deus. Conhece na juventude o Hinduísmo, o Catolicismo e o Islamismo. Seu pai é um hindu “moderno”, racionalista, proprietário de um Zoo. Devido à situação econômica, resolve emigrar para o Canadá. Leva a família e os animais em um navio. Durante a travessia, numa tempestade, o barco vai a pique.

Pi sobrevive sozinho, com o tigre, em um bote salva-vidas. E passam vários dias à deriva no mar, sobrevivendo até chegar ao litoral do México.

A relação que Pi, que na época tinha seus 15, ou 16 anos, estabelece com o animal é uma aula sobre a humildade e a nossa própria relação com nossa natureza feroz e selvagem.

A maneira como o garoto aceita e reverencia as dificuldades, os sinais e os empurrões que ele considera receber de Deus, de Jesus ou do Senhor “Vishnu”, naquela situação insólita, me fizeram pensar.

O filme foi lançado em 2012, sobre um livro lançado em 2001. Estamos em 2020. Pouco tempo. Mas hoje, me parece inimaginável um filme desses ser colocado no mercado. Ter um Deus que nos desafia e nos coloca em situações difíceis, para que possamos nos desenvolver e encontrar nossa criatividade e originalidade mais impensável e impenetrável está fora de moda. Um Deus que nos manda sinais e boias-salva-vidas em meio às ondas e tribulações que Ele mesmo também manda, soa quase como uma heresia.

O Deus de Pi não é politicamente correto. Não quer nosso dinheiro pra construir igrejas e nem é um “coach” do nosso sucesso e nossa felicidade. Na verdade, Ele se parece mais com o Deus dos profetas do Velho Testamento. Um Deus que coloca os seus fiéis em dificuldades para que possam encontrar a facilidade em “si mesmos”. Um Deus que testa a nossa fé.

Na verdade, em alguns momentos, a história fantástica chegou a me lembrar de outra história de arrepiar: a história de Jó. O discípulo mais fiel de Deus, que vira objeto de uma aposta tentadora do Diabo. E vence no final, depois de todas as tribulações possíveis e imagináveis. Se a história de Jó fosse lançada no mercado hoje, seria motivo de protestos e processos judiciais. O livro seria queimado em praça pública. Seu autor seria chamado de “extremo-alguma-alguma coisa” e seria bloqueado nas Redes.

A cena da tempestade final é épica. Pi, que não tem a paciência do herói bíblico, grita para o céu, em meio à fúria das águas: “ Você já levou minha família, levou tudo, o que mais quer de mim? Leve a minha vida também!”. Mas não grita com raiva. Nem indignação. E sem um pingo de pena de si mesmo. Não se considera uma vítima. Está em êxtase diante da grandeza do Incognoscível, que o esmaga.

Sua única lástima se resume a se desculpar com “Richard Parker”, por não ter podido salvá-lo. Seria Pi, um novo Jó? Disfarçado e embalado em religião oriental? Não sei. Nem sei se seu autor saberia responder.

Mas Pi, assim como Jó, não foi devorado nem por “Richard Parker” e nem pelas águas. Viveu pra nos contar a história. Pra chorar a indiferença do tigre, que foi embora sem se despedir. E pra tentar convencer seu ouvinte, o escritor pós-moderno, cético e depressivo, da existência de Deus.

Se ele conseguiu? Não sei. A história não conta.