Sobre desventuras e boaventuras
É conhecido o ditado "a fé remove montanhas", mas nem todos sabem de sua origem bíblica. Em Mateus (17:20), Jesus cura o filho de um homem que o buscou por não ter encontrado a cura pelos apóstolos.
Os discípulos perguntam a Jesus porque não puderam curá-lo, ao que Jesus lhes responde: "Por causa de vossa escassa fé. Em verdade vos digo: se tiverdes fé do tamanho de um grão de mostarda, direis a este monte: transporta-te daqui para lá, e ele se transportará e nada vos será impossível''. A fé é de fato uma força movedora de montanhas, isso quer dizer, nos permite romper os eventos inesperados.
Janaína Mourão
A vida é feita daquilo que se controla (quase nada), o esperado; e aquilo que não se controla (quase tudo) - o inesperado.
Há diversas biografias que nos provam a força da fé, muito mais do que se conhece ou se têm relatos. Em cada esquina das cidades, em cada solo cultivado e em cada terreno habitável deste planeta, há seres humanos movendo montanhas. Não todos, o que é uma lástima, pois cada ser que se entrega, que se abdica de uma vida plena, perde-se para si e gera perdas para todos.
Todos são instantes importantes na duração da eternidade, como sabiamente nos explica A.-D Sertillanges.
A fé, todavia, não pode ser alcançada em uma vida sem finalidade. "O mundo está em perigo por falta de máximas de vida", complementa A.-D Sertillanges. É fato. A vida sem um sentido implica desespero, desesperança, desistência e outros tantos "des-algo".
Diante de elementos adversos - característicos da vida terrena -, o ser humano, sem norte e direção, se afunda em suas próprias desventuras. Estudando algumas biografias, uma questão se tornou latente: os acontecimentos antagônicos, ou seja, inesperados, tornam-se desventuras apenas para aqueles que a eles se rendem? Ou poderá o inesperado se tornar o contrário - uma Boaventura?
Analisemos algumas dessas biografias.
José despertava inveja, sem intenção de fazê-lo. O pai, Jacó, demonstrava-lhe mais afeto e cuidados aos olhos dos irmãos. Assim, os irmãos decidiram por vendê-lo como escravo e alegá-lo como morto ao pai. Essa adversidade ter-lhe-ia sido uma desventura não fosse ele um homem com clareza de sua existência: servir a Deus.
¹ A vida Intelectual
² Idem, página 35.
Essa finalidade deu-lhe fé e permitiu-lhe encontrar sua própria vocação - interpretar sonhos. José também possuía habilidades práticas que o destacavam em tudo o que fazia. Chegou a primeiro ministro do Egito e salvou da fome muitos homens. O inesperado lhe foi, portanto, revelador e lhe permitiu re-edificar sua própria vida, alcançando prosperidade.
Boécio possuía renome e prestígio pela sua moral e dedicação na busca pela verdade. Tinha clara a sua finalidade de existir - a busca e o amor pelo conhecimento. Por questões de interesse e política, foi acusado de maus atos e posto em cárcere. Foi torturado e morto.
Isso poderia ser motivo para atestar que, para ele, os eventos antagônicos foram desventuras.
Mas, como pode ter sido desventura, um evento que gerou como fruto tão preciosa obra como a Consolação da Filosofia?
Escrita em cárcere, a obra representa a verdade nua e crua de um homem que trava batalhas contra seus medos, revoltas e não cessa de buscar a sabedoria.
Ele não desiste de entender, de conhecer, mesmo à beira do abismo do tempo. Boécio renasce em cada um que lê as verdades redigidas - entre poesias e prosas - em tão vocacionada obra.
Viktor Frankl, ciente de sua escolha pela medicina, viveu um período de dúvidas sobre o futuro. Não sabia se deveria mudar para os Estados Unidos ou permanecer com seus pais idosos.
Ao ver o mandamento "honrar pai e mãe", enquanto caminhava pelas ruínas de um templo religioso, resolveu ficar.
Pouco tempo depois, foi levado ao campo de concentração e vivenciou todo o horror do holocausto. Eventos inesperados desse porte destruíram a vida de milhares, não apenas dos que efetivamente morreram nos campos, mas também dos que sobreviveram. Mas quem seria Viktor Frankl sem essa experiência?
Foi percebendo que para algumas pessoas a vida se arruinou que ele desenvolveu toda a Logoterapia e edificou uma medicina singular.
José de Anchieta preparava-se para ser sacerdote, estudando no colégio da Companhia de Jesus, em Coimbra.
Logo, contudo, descobriu uma doença na coluna que lhe gerava muitas dores.
Tinha o corpo no formato de um S. Teve medo de ter que abandonar seus projetos.
Junto a outros colegas, almejou ir ao Brasil, como jesuíta. Foi surpreendido com a sua nomeação e seguiu alegre para a terra em que viveria, de forma gloriosa, os restos de seus dias.
Ocorre que, do Brasil, o chefe dos Jesuítas, padre Manuel de Nóbrega, enviara cartas insistentes a Portugal pedindo suporte. Afirmara que não havia necessidade de seleção; os "fracos de engenho" e "doentes do corpo" poderiam ser enviados. José de Anchieta fora escolhido, dentre outros motivos, pelo problema físico que possuía.
Uma doença, que poderia ser, para muitos, um fim, foi para ele uma força. Não apenas porque lhe permitiu vir ao Brasil, mas porque lhe deu firmeza para vencer as dificuldades, que não foram poucas, na catequização de índios em uma terra estranha. Ele será sempre lembrado como personagem fundamental na fundação de nosso país.
Pelas biografias, percebemos que uma vida com finalidade é capaz de mover montanhas e superar antagonismos, tornando-os boaventuras. Em vez de desventuras, eventos inesperados podem se tornar reveladores dos dons ou vocações humanas - em sua plenitude
Predestinados, esses homens edificaram um legado para além de si mesmos.
José do Egito para sempre será lembrado por sua confiança e serviço a Deus. Boécio, por nos esclarecer a verdadeira face da filosofia. Viktor Frankl, por nos lembrar que a vida não pode ser completa sem sentido. José de Anchieta, por ser pioneiro em trazer a palavra de Cristo para essa pátria tão amada, a terra de Vera Cruz - Brasil.